Brígida Rodrigues's profile

Confetinhos da felicidade

Confetinhos da felicidade 

Sou uma pessoa de podcasts. Se eu tivesse nascido no interior de Minas na década de 50, com certeza seria uma daquelas senhoras que ouviriam rádio a tarde inteira enquanto esfregava as roupas. E, ouvindo o episódio 110 de Rádio Escafandro, fiquei pensando no quanto o nosso corpo é poderoso. Do quanto o nosso cérebro é bizarramente complexo. E não só ele, mas o nosso estômago também. E todo o sistema minunciosamente interligado que nos configura como seres humanos.
E nos últimos três anos, mais especificamente de 2023 para cá, venho percebendo como o meu corpo fala. Como a minha mente me diz coisas que nem sempre estou pronta para ouvir. E aqui, digo do ponto de vista biológico mesmo. Não tem nada de místico neste texto. Não neste, pelo menos. Tem a ver com complexos neurais. Coletivo. Individualidade. Ancestralidade. O que a minha mãe sentiu enquanto eu estava na barriga dela que influenciou em quem sou hoje. Tem a ver com desequilíbrios e estímulos em diferentes partes do meu cérebro. Tem a ver com traumas. Traumas que eu nem mesmo me dou conta. E de como isso influencia quem eu sou hoje. Ou do porquê preciso tomar desvenlofaxina e buprobiona aos 29 anos de idade. Do porquê minha dopamina simplesmente desistiu de mim e precisa ser constantemente estimulada de formas pouco equilibradas e pouco saudáveis.

Se entrarmos nesse vespeiro, que é complexo demais pra um sábado, 10h, vou acabar chegando no determinismo e no livre arbítrio. E, sinceramente, não estou bem o suficiente pra mergulhar tão fundo na filosofia. O que quero entender é: quais escolhas me fizeram chegar até aqui? E de que maneiras meu corpo e minha mente me mostraram que alguns sintomas não são tão novos quanto eu imaginava?
Recentemente, uma memória muito maluca me assaltou, e me fez ficar completamente obcecada nela. No ensino fundamental e médio, mesmo apesar da minha personalidade tímida e retraída, eu tinha muitos amigos. Vai saber, mas eu tinha. E sempre que chegava nas férias de julho, meus amigos começavam a brincar que muito em breve eu “sumiria”, e que eles só me veriam nos últimos dias do recesso ou nos primeiros dias de agosto.

Se você me perguntar o que eu fazia nesses dias de sumiço não vou saber responder ao certo. Suspeito que só ficava no meu quarto lendo e escrevendo, fanficando sonhos grandes demais na minha cabeça. O que significa que estava recarregando as minhas energias. De alguma forma, me incomodava essa brincadeira. Sei que não era por mal, mas me incomodava em algum lugar muito profundo do meu corpo. Uma parte que sabia que isso era incongruente com a maioria das pessoas, com a maioria dos meus amigos. Eles, que passavam dias na casa de outros amigos. Eles, que passavam dias no clube. Eles, que adoravam festinhas a noite. E eu, que simplesmente não conseguia lidar com a ideia de passar mais do que cinco horas fora de casa, quiçá dormir num quarto que não fosse o meu.

E nessa de pensar em dormir num quarto que não fosse o meu, fui assaltada por uma outra lembrança. De quando participei da colônia de férias do clube – a propósito, colônia de férias era sinônimo de pesadelo para mim – e todos nós tivemos a chance única de dormir num incrível espaço aberto com centenas de pessoas. Simplesmente o sonho de qualquer pré-adolescente recém saído do forno da infância. Lembro até hoje da quadra do poliesportivo lotada de crianças de todas as idades, colchões e colchonetes espalhados por vários metros quadrados. Uma quantidade exorbitante de gente. Obviamente, o clube se arrependeu amargamente dessa escolha de cronograma, e posso dizer que a noite no clube jamais se repetira. E eu, ansiosa que estava por essa noite mágica, cheinha de atividades noturnas, simplesmente... não consegui ficar. Liguei para minha mãe do meu Oi Xuxa vermelho 8864-5460 e pedi a ela para me buscar. Ela foi, e lembro muito vividamente, agora, de me aconchegar na minha coberta e olhar pro meu quarto, suspirar feliz, e dormir como um anjo no que foi provavelmente o melhor sono da minha vida.

Mas... aquela lembrança de dormir no clube eu não tenho. Assim como não tenho várias lembranças que os meus amigos provavelmente compartilham, e eu não. Porque estava fazendo sabe-se lá o que em algum canto sombrio da minha mente. E, não sei, tudo bem. Pessoas são diferentes. O problema é o mundo ser o mesmo.
E isso explica tanta coisa sobre a Brígida dos vinte e poucos. É como se o meu cérebro simplesmente tivesse entrado em curto-circuito, e agora, depois de sofrer muito, eu precise de alguns vários comprimidos para me equilibrar e voltar a um pouquinho de normalidade.

Sou deficiente de produzir minha própria dopamina, e enquanto eu esperava com muita vontade que os sintomas significassem uma falta de vitaminas, ou uma lombriga enorme comendo minhas energias bem aconchegada na minha barriga, a verdade é que eu simplesmente preciso mesmo é de uma boa ajuda psiquiátrica. Soa uma grande, enorme  e flamejante bandeira vermelha balançando ao vento? Falar isso pras pessoas é ok? E não falar? Onde isso me deixa? Bem, menos maluca, isso com certeza. Mas fico igualmente tranquila e pouco esperançosa. E se eu tiver que tomar essa merda pra sempre? Um amigo querido uma vez me disse que não entendia o porquê de tanto alarde com remédios psiquiátricos, sendo que as pessoas não costumam ter a mesma parcimônia com remédios pra estômago, por exemplo. Ou pra dor de cabeça. E ele, claro, estava certíssimo. Esse comentário certeiro mudou todo o rumo do meu tratamento dali em diante – que, até então, era inexistente. Por isso amo meus amigos, aliás. Seus comentários despretensiosos são sempre certeiros.

Mas tomar esses remédios significa que, de fato, tem algo em falta no meu cérebro? Ou é porque o mundo inteiro tá tão ferrado que preciso compensar minha personalidade em estímulos que não consigo ter naturalmente? Porque uma coisa é certa: nunca vi pessoas da minha idade tão doentes. Antibiótico comendo solto. As bactérias atacando com força o nosso sistema imunológico. Gastrite. Transtorno de Alimentação. Ritalina. Desvenlofaxina. Rivotril. Lexopran. Ufa. Muitos confetinhos da felicidade. Fico pensando se eu tivesse nascido antes dessas belezinhas serem criadas. Eu não teria ficado doente? Ou teria enlouquecido ainda mais por não ter as ferramentas necessárias para o meu tratamento?

Não sei, mas se eu fosse apostar, apostaria num mix insano das duas coisas.
No momento, acho que o único modo de viver sem medicação constante seria de fato viver no alto de um farol, numa praia deserta, enfrentando tempestades assustadoras de chuva com maré alta e ondas gigantes. Estranhamente, o medo disso me daria um certo conforto. O que releva porquê eu tomo remédios em primeiro lugar.
E não satisfeita, decidi, depois de quase três anos sem saber como delimitar a minha pesquisa, que vou estudar de forma muito aprofundada as várias nuances da melancolia na poesia. De certa forma, vou me estudar também. Neste exato segundo estou cercada por Walter Benjamin, Robert Burton, Kierkegaard e os poemas tristes de Suzana Nunes. Sentada ao meu lado está, também, a minha própria melancolia. Talvez, tendo a coragem de entender o problema, eu possa finalmente andar de mãos dadas com ela.
Confetinhos da felicidade
Published:

Owner

Confetinhos da felicidade

Published:

Creative Fields